Uma nova estrutura de conhecimento?

10 de dez. de 2009 by Mari Craveiro
Semana passada Pierre Levy indicou um artigo via Twitter que eu achei bem interessante. Não sei se entendi completamente tudo que o autor colocou em suas letrinhas, mas as idéias ali apresentadas me fizeram pensar um bocado.
Vou tentar reproduzir o que  autor, Ollivier Dyens, coloca neste artigo, que foi escrito para o blog  de tecnologia da Algerie Network . É longo, me desculpem.  Mas achei tão legal que resolvi compartilhar e depois fazer algumas pequenas observações.
Ollivier inicia falando de sua experiência como professor e de como ele percebia seus estudantes: sem educação, incapazes de se concentrar, focados no superficial e no aleatório, sem conhecimento histórico e péssimos na escrita. Para ele, era uma geração  que estava muito mal preparada para enfrentar os desafios e problemas de uma vida cada vez mais complexa.
Enquanto ele e o mundo acadêmico teciam este diagnóstico, a  tecnologia operava uma mudança radical na estrutura da economia, acompanhada de um crescimento dos mais importantes da história do Ocidente.  Em menos de dez anos, os jovens,  cuja formação intelectual ele considerava profundamente inadequada, conseguiram virar do avesso  as fundações econômicas e intelectuais do Ocidente. Como é que esses jovens a quem ele e tantos outros criticavam, que pareciam não possuir quase nenhuma ferramenta cognitiva essencial ao desenvolvimento intelectual, poderiam ser os atores principais de uma transformação tão importante?
Há vários anos já que uma nova estrutura de aprendizagem fez sua aparição. Uma estrutura que esses mesmo jovens estavam utilizando para compreender o mundo e navegar pelo mar revolto das complexidades contemporâneas  e que todos os críticos eram incapazes de identificar, legitimar e explorar. Essa estrutura, hoje, se infiltrou por praticamente todos os domínios da pesquisa, do conhecimento e da cultura.
Dyens aponta que essa nova estrutura de conhecimento surgiu junto com aceleração do tempo (mundo tecnológico), o aparecimento  da internet em 1994 e  com a massificação da MTV e da CNN nos anos 80. 
Uma  nova forma de aprendizagem que tem na aceleração/velocidade, na superficialidade (que ganhou um novo sentido) e na estrutura neural os seus pilares.
A aceleração nasce através das mudanças que a tecnologia e a vida em rede causaram em nossas vidas. O tempo, hoje, é  percebido de maneira diferente.  Ele não é mais orgânico, mas tecnológico, não é mais absoluto, mas relativo.  Sua percepção é pautada, principalmente, por uma nova velocidade que decorre do contato que temos com aparelhos tecnológicos que aceleraram diversos tipos de procedimentos, ciclos e estruturas temporais.  Como resultado disso tudo, as ferramentas clássicas de cognição não são mais tão úteis como antes. Segundo o autor, é humanamente impossível, hoje em dia,  gerir de maneira linear e vertical, reter, analisar e conservar a informação proveniente das diversas fontes e espaços de conteúdo existentes, que se multiplicam em inúmeras dimensões a todo momento.
A superficialidade ganha aqui um novo sentido.  Pois essa nova estrutura de aprendizagem, que se desenvolve de maneira horizontal, busca entender os movimentos e não as causas, se alimenta de percepções globais e se espalha mais do que  se aprofunda, sendo  capaz de gerir o efêmero, o evanescente  e a instabilidade temporal.  A superficialidade, dentro dessa visão, se transforma numa ferramenta da inteligência e não mais num símbolo de preguiça. A velocidade com que devemos reagir à e absorver a informação é muito mais importante do que as estratégias cognitivas anteriormente consagradas - reflexão,  contemplação e  análise sistemática.
O surgimento da  web propôs uma concepção e percepção de mundo cuja essência não é só hipertexto ou sua estrutura em formato de árvore. Para captar a web, o internauta precisa navegar, explorar, andar por aí. Ele não pode ficar imóvel, porque ela não é uma biblioteca ou um receptáculo passivo de informações. A web é um espaço, um continente. Para vivê-la de maneira eficaz, é preciso pular de  um espaço ou acontecimento a outro,  se movimentando sobre a expansão contínua da rede e conseguir agarrar algumas migalhas de informação.
Na internet, é impossível  e até mesmo perigoso, tentar se aprofundar.  A web é movediça  e por isso o internauta não pode ficar parado.  E é essa necessidade de movimento que tem um impacto profundo sobre a utilização da superficialidade na nova estrutura de aquisição de conhecimento, pois ela faz do nomadismo,  a sua estrutura primordial de  aprendizagem.
O nomadismo intelectual que a web impõe não empobrece o pensamento, muito ao contrário. A riqueza de um ambiente contribui diretamente para o desenvolvimento cognitivo.
Segundo Pierre Levy, nós supomos, sem muito risco de nos enganarmos, que o universo interior de um pássaro brilha mais cores, ressoa mais sons e abarca muito mais espaço que o universo de uma ostra. Para ele, existe uma relação direta entre a interconexão de um organismo (ou o seu grau de sensibilidade a ele mesmo) e a riqueza do mundo que ele experimenta. Quanto mais um ser é interconectado  ao seu interior, mas seu campo de interação é vasto, mais sua experiência é rica, mais ele é capaz de aprender (alargar seu universo), mais ele é conectado ao exterior.
Somos realmente mais  espertos que nossos avós?  A ciência não sabe o que causou este suposto salto. A genética não pode operar em tão curto espaço de tempo. Ulric Neisser propõe que essa evolução tem a ver com o aumento da complexidade visual da vida moderna, que resultou numa maior capacidade de lidar com aspectos espaciais presentes em testes de inteligência.
Quanto mais rico em desafios, questões, novidades, mais o cérebro se desenvolve e se sofistica.  A web, devido a quantidade de estímulos visuais, sonoros e textuais,  à velocidade com que estes são constantemente renovados e repostos , ao movimento e ao nomadismo que ela impõe,  acaba forçando o cérebro a resolver inúmeros e incessantes desafios de informação.
A estrutura neural entra aqui como uma analogia, uma inspiração para este novo modelo de aquisição de conteúdo. A nova estrutura de conhecimento não é linear, nem vertical e não se dá através do conhecimento enciclopédico, analítico e contemplativo.   A massa de informação proveniente da rede e com a qual nos deparamos cotidianamente é expansiva, fluídica e em constante transformação. Tanto a nova estrutura informativa quanto a estrutura neural do cérebro são volumes plurais cuja complexidade nos escapa e cuja essência não é o acúmulo mas o caminho utilizado.  Em ambos, a informação emerge da passagem (de neurônio em neurônio) e  se torna conhecimento através da criação de ligações entre essas passagens/transmissões. 
Todas os meios eletrônicos (TV, Rádio, Celulares, etc) operam a partir do mesmo princípio: pacotes instáveis que fazem uso da superficialidade, aonde o conhecimento é  passagem, transmissão, transição.
Por isso nós nos deixamos levar por todos esses meios, porque eles nos convidam a explorar o mundo da mesma maneira com que nós fazemos fluir nossos pensamentos, através de saltos, associações, interconexões e apartes. A nova estrutura de conhecimento nos seduz justamente porque ela reproduz uma dinâmica cognitiva atávica, ao invés de analisar e contemplar, a nova geração que se formou junto com  a web se acostumou a ver, se movimentar, perceber e reagir.
Outra passagem bem interessante é a que cita o psicólogo Robert J. Lifton, que chama a nova geração de “proto seres humanos”.
“Eles vivem num mundo de sons e bits, estão acostumados  a acessar a informação rapidamente,  têm pequenos surtos de atenção, são menos reflexivos e mais espontâneos (...) O mundo deles tem menos fronteiras e é mais fluídico. Eles cresceram com o hipertexto, links, loops, feedbacks e possuem uma percepção da realidade que é muito mais sistêmica e participativa  do que linear e objetiva. Eles são capazes de enviar emails para endereços virtuais de pessoas que eles nunca conheceram, sem saberem onde elas se localizam geograficamente (...) Eles são experimentais e  inovadores. Costumes, convenções e tradições, por outro lado,  praticamente inexistem no ambiente hiper veloz e mutável em que vivem.”
Para Dyens,  o grande ponto de mudança que vem junto com essa nova estrutura é a relação com a escrita. Citando Michael Gibbons, ele coloca que nossas humanidades têm sido definidas por sua relação estreita com a escrita, mas essa ligação está agora fragilizada devido à pressão exercida pela velocidade, superficialidade e contaminação das novas estruturas de aprendizagem.
Por que ? Porque o texto, na sua forma clássica, é centrípeto: ele puxa para si o leitor, prende (pela sedução) através das palavras, frases e reflexões. Linear, ele é autoritário e dominador. Exige concentração e foco. O texto é, a uma só vez, fonte da experiência e memória humanas e espelho da relação que o homem tem, pela sua biologia, com o tempo. O texto é centrípeto porque seu papel principal é facilitar a memorização, a reprodução de algo. O texto é um souvenir humano de prazer,  dor e sofrimento. Ele é linear porque espelha os ciclos humanos, refletindo a percepção que temos de nossa própria existência: introdução, desenvolvimento e conclusão. Nascimento, vida e morte.
Por outro lado, volumes de informação, já que eles só revelam seu entendimento pela transmissão e contaminação, são centrífugos. É por isso que a narração se perde e a faculdade de escrever de maneira linear e analítica também. O conhecimento atual é adquirido numa viagem, ele se mostra ao partir, ele se transforma quando escapa. O texto clássico representa o Homem dentro de seu ambiente biológico. Já a nova estrutura reflete o Homem dentro das metamorfoses contínuas de seus diversos universos eletrônicos – virtuais.
Será que estamos entrando num mundo menos inteligente e menos humano? Dyens acredita que estamos penetrando num mundo aonde as bases que fundaram nossa cultura – a acumulação histórica, a contemplação, a análise – não nos prendem mais.  Estamos livres agora. Para nos engajarmos  (ou atolarmos ?) dentro da criatividade e da transformação. Livres para nos inventarmos e reinventarmos sem parar, de viver e nos alimentarmos  do aleatório e do que está por terminar. Mas também condenados à fragilidade e ao efêmero.
Este é o resultado da última década. Estamos na aurora de uma nova cultura que gere de maneira eficaz o aleatório, o incerto e o passageiro; uma cultura que compreende o movimento e suas ondas, aonde a estabilidade não é um objetivo mas simplesmente um estado precário aonde o equilíbrio é nutrido pelo caos. Uma estrutura que reage com inteligência aos desafios de seu ambiente através da circulação de seus indivíduos e pela informação gerada por este movimento incessante. Uma inteligência coletiva, conectiva, de matilhas e colônias, que escaneia,  navega e manobra em tempo real e cuja essência não é a acumulação mas a reatividade. E é esta nova cultura que alimenta os jovens que hoje estão nas universidades e colégios.
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O que eu queria dizer sobre isso tudo é que, pra mim (e acho que pra mais meia torcida do Flamengo), o caminho do meio  entre esses dois mundos de ferramentas cognitivas é o grande barato. Não dá pra viver sem se aprofundar. O próprio autor seria incapaz de produzir este ensaio se não tivesse se detido na observação, análise, aprofundamento e desenvolvimento de sua percepção sobre a imensa transformação que vem ocorrendo na estrutura de conhecimento. Por outro lado, essa noção  de se deixar levar, reagir e atuar sem certezas e verdades absolutas, entre impulsos e impressões é muito produtiva, porque a criatividade é resultado de movimento. 
Não posso deixar de frisar também que pensar nas causas, e não só na vivência (caminho percorrido e a percorrer) é importante. No outro post, eu falava justamente da  relevância de se perguntar sempre o por que de nossas próprias atitudes, ações e reações. Talvez, essa pergunta seja muito mais útil para o interior do que para o exterior, diante de nossa impotência de querer entender tudo o tempo todo. 
Para dentro, profundidade. Para fora, movimento e flexibilidade. Quanto mais ciência do nosso interior, quem sabe mais da realidade que nos cerca somos capazes de captar. Bye.





2 comments:

Daniel de Andrade Lorenzo disse...

...me preocupo quando pratico a Yoga numa mesma sala em que a maioria quer mais flexibilidade e corpos bem torneados, ao mesmo tempo em que acho engraçado ir a qualquer bom restaurante de comida tipicamente japonesa servir makimonos de "morango e chocolate", carne-de-sol, "romeu e julieta"...

Uma amiga comeu feijoada em Paris e disse que o prato era tão organizado e light que parecia saciar apenas a vontade de quem não conhecia mas queria a experiência para si.

De fato o que mais assusta no superficial é a tendência na formação de grandes redes sociais de acomodados ao dinamismo de encontrar qualquer resposta compreendendo a pergunta apenas a partir das palavras chaves. Pergunto-me todos os dias se sei o que quero perguntar mas diante de tantas respostas padrão vou também compartilhando da praticidade de parecer inteligente questionando menos e aceitando o admirável novo mundo em tempo habilíssimo.
Abração!

P.S. Desde o primeiro texto que li venho me encantando com mais um de seus talentos. Grato por compartilhar com todos. :D

Unknown disse...

Má,
muito interessante isso de se repensar a superficialidade, que é talvez um pouco como o prazer de se surfar para depois mergulhar enrolado numa onda. outra analogia seria com a pintura abstrata da década de 50 que abondanava a profundidade ilusória pela superficialidade real da tela. Sim, o nomade caminho do meio, sem dúvida. adorei seu texto. bj.